Por Hellen Cristhyan*
Pauta de diversas
disputas internas – que vão desde a forma de organização, seu caráter,
publicização ou não dos relatórios – e polêmicas nas redes sociais, que por um
lado representam a pressão dos movimentos sociais que exigem respostas, e por
outro apontam diversas ameaças de militares e seus co-réus, a Comissão Nacional
da Verdade tem agora pouco mais de oito meses para chegar ao grande veredito.
Não será fácil. A
começar pela Lei de Anistia Política instituída no Brasil em 79. Como diz
Carlos Augusto Marighella, filho do Mariguella, a Lei pressupôs “uma anistia de
araque, viciada pela ideia de que a gente deveria, de alguma maneira, perdoar
os torturadores"¹. A Anistia brasileira, porém, apesar de carecer
urgentemente de uma reinterpretação, quicar de sua anulação, não encontra no
Estado disposição para fazê-la.
Dar nome aos bois
também tem sido uma das grandes dificuldades da Comissão. O constante emprego
de codinomes pelos carnífices do povo brasileiro, por vezes o rosto encoberto
(da vítima ou do agressor), as roupas à paisana (sem identificação de patentes
ou farda), dificultam a memória individual e coletiva das testemunhas.
Outro grande empecilho
para a memória e a verdade são as violações institucionais, como as prisões sem
ordem judicial, ou qualquer tipo de registro, reiteradas vezes ocorridas,
violando direitos como o reconhecimento à personalidade jurídica e o direito
das famílias de saber a verdade. Além disso, o esvaecimento de diversos
arquivos daquela época deixa um vácuo atormentador. Mesmo que já comprovada a
constante troca de informações e documentos entre todas as instâncias policiais
e do governo à época, não há quem preste contas dessa queima de arquivo.
Entretanto, a verdade
não poderá mais ser calada. O cálice de vinho e de sangue já fora derrubado e
determina que haja justiça. Os facínoras estão envelhecendo e não podemos mais
esperar - ou então serão apresentados laudos médicos de suas incapacidades
mentais, outros já estarão mortos, assim como não duvido que algum venha a
perpetrar atentado contra a própria vida. Precisamos correr contra o tempo e
deflagrar a criação de Comissões da Verdade em todas as entidades, instituições
e organizações. É, por dever, que as universidades brasileiras abram seus
arquivos: a constituição de Comissão da Verdade em suas instâncias é imprescindível
para se fazer saber da luta de todos e todas os/as estudantes e de quão
repressor foram os Conselhos Universitários e suas instâncias no período
ditatorial.
Sistemáticas operações
e instrumentos do Estado, como o Departamento de Ordem Política e Social
(DOPS), a Operação Bandeirantes (OBAN), o Destacamentos de Operações de
Informação – Centros de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), e suas promíscuas
relações com empresas (como o financiamento da OBAN pela FIESP) e banqueiros
não poderão ficar sem a devida investigação – rápida, profunda e eficiente. O
Estado, comprometendo os governantes, pessoas jurídicas e sociedade civil, tem
por obrigação abrir todos os arquivos que remetam às terríveis arbitrariedades
da ditadura.
O trabalho da CNV não é
pouco para continuarmos a dar espaço para divisões internas e conflitos entre
governantes e movimentos sociais. Para revelar a verdade sobre nossos
combatentes e seus carrascos é necessário mais do que cavar os escombros da
mentira no Brasil. Sob o imperativo da Operação Condor, outros Estados latinos também
exterminaram milhares de militantes de esquerda desintegrando-os, seja
fisicamente, seja emocionalmente e até mesmo de forma documental - alguns são como
se nem tivessem passado pelas mãos do Estado e continuam desaparecidos até
hoje. Portanto, urge a convocação, pela Presidenta Dilma, de uma reunião com os
países da America Latina e também com as famílias de desaparecidos políticos e
os movimentos sociais para sanar os conflitos, dar celeridade às investigações
e acabar com essa tormenta de não saber onde estão nossos grandes homens e
mulheres.
Faz-se necessário a
concretização de imediatas parcerias entre a CNV e as entidades e organizações
da temática dos Direitos Humanos para que as violações possam ter sua devida
sentença, com punição para aqueles que cometeram ou aprovaram/consentiram a
realização dos crimes, como indica a Convenção Americana e a Convenção
Interamericana.
Apurar fatos e chegar à
verdade sobre uma época em que os registros públicos eram usurpados por
belicosos, e de onde a memória das pessoas foi surrupiada através de
mortificações diversas, como a cadeira do dragão e choques elétricos, a luz da
legislação do regime dos milicos tem sido uma das maiores empreitadas
investigativas do Brasil.
Ainda hoje a polícia
militarizada persiste em ‘estourar’ casas e aparelhos, continuando a violência
institucional e a banalização do mal que aprendem nos livros e sites – sites como
o do grupo Terrorismo Nunca Mais (TERNUMA)³, que dissemina o ódio contra
pessoas e organizações com ideologia de esquerda, apresenta a velha
argumentação de que tudo o que foi feito foi em nome da Ordem e para proteger a
nação do anarquismo. Grupos como este, ainda hoje, têm suas formulações no seio
de estirpes militares e se infiltram na mídia para alimentar, por exemplo, a
aversão aos médicos cubanos e a qualquer política pública que venha a trazer
reparo social, direitos para todos e todas e igualdade.
Esquadrões da morte não
mais passarão! É preciso apresentar à sociedade todos os fatos cometidos por
esses nazi-fascistas nos anos de chumbo para que seus comparsas – vivos e com
suas brilhantes patentes ainda hoje,
não continuem matando nossa juventude enquanto protestam por mais direitos, nem
jogando nossos sonhos em valas clandestinas. Cito como exemplos atuais, os
mandantes do desaparecimento do Amarildo, no Rio, que escancaram o extermínio
da população pobre, e o identificado como Capitão Bruno², no ataque arbitrário
a manifestantes no 7 de Setembro, no Distrito Federal.
O que estamos a ousar
fazer, e aqui falo das famílias de homens e mulheres mortos e desaparecidos
políticos, de guerreiros e guerreiras que tombaram dos movimentos sociais, das
organizações pró-direitos humanos, das Comissões da Verdade e do próprio
governo, não é apenas modificar os termos e títulos da narrativa militar
contada no Brasil. A CNV, e a busca da memória deste país, ajudará a reescrever
a história real do nosso povo, suas pelejas, lutas e lábaros. Reescreveremos os
nomes das escolas, das praças, ruas, espaços públicos, e a verdade virá à tona.
Para que não se
esqueça, para que nunca mais aconteça.
*Hellen
Cristhyan estuda economia na UFSC, milita no Coletivo O Estopim e ocupa a
Secretaria Geral da União Catarinense dos Estudantes - UCE. http://andarilhar-me.blogspot.com.br/
Nenhum comentário:
Postar um comentário